Este texto foi escrito em maio de 2014, e publicado originalmente em um blog que a memória agora não me deixa lembrar o nome nem o endereço. Foi um blog idealizado pelos amigos Adans Jirschick e Assad Abdala Ghazal. Era para ter sido publicado aqui e para variar também não achava o arquivo original. Estou republicando conforme foi escrito, pois quem costuma escrever sabe que às vezes a tentativa de aprimorar acaba estragando, então segue o texto conforme a versão original:
O tema sobre o qual me proponho a escrever agora, é um tema
que sempre tive vontade de me aprofundar. Sempre mencionei de forma rasa, em
observações, postagens, conversas, mas nunca desenvolvi em forma de texto, até
porque falar sobre temas “comportamentais x inerentes ao gênero” sempre dá
muito pano para a manga. Resumindo: coisas de homem x coisas de mulher.
Pretendo escrever com base em vivência, experiência e
observação, sem a pretensão de ter que comprovar cada afirmação com uma
referência bibliográfica de “Freud e sua gangue”. O que vem a seguir, foi
vivido e sentido e sou grata por ter sido assim.
Tenho 41 anos, moro em São José, na grande Florianópolis/SC e
tenho carteira de habilitação somente de categoria “A”, há seis anos. A única
referência forte que tive do motociclismo foi uma tia, irmã da minha mãe, que
pilotava motocicletas desde que comecei a me entender por gente, quando pilotar
moto era coisa “para cabra macho”.
Eu não me dava conta da raridade que ela era. Apenas da
referência. Era a tia mais livre e feliz que eu tinha (e ainda tenho), e eu
queria ser como ela.
Antes da paixão pelo motociclismo, meu pai me ajudou de
maneira incrível a criar gosto por consertar coisas (ou tentar, pelo menos),
ser curiosa, tentar descobrir como funciona, e ele será o tema principal do
texto de hoje. Minha tia que aguarde pois ela será tema exclusivo de outro.
Domingo era dia do meu pai desmontar coisas. Ora o carro
estava com um barulho estranho, ora a moto não queria pegar direito, a TV com
chuvisco, o rádio mudo...sempre tinha uma coisa para desmontar, consertar,
soldar. Quando não tinha absolutamente nada para consertar, ele inventava
coisas. Comprava revistas de eletrônica e montava luzes que ligavam com
fotocélulas, engenhocas que piavam como passarinhos ou imitavam grilos para
esconder no quarto das visitas (quando desligava a luz, a fotocélula acionava o
grilo. Acendendo a luz, ele parava), afinal, desde os tempos de meu pai que “a
zoeira não tem fim”.
Quando ele inventava essas coisas, chamava sem distinção eu e
meu irmão para ajudar. Sem essa de chamar só o macho da casa. Quem fosse a fim
que viesse. Pegava a caixa de peças dele e pedia: “procura pro pai um
capacitor”, ou a caixa de ferramentas:
“pega aquela chave de boca 17 pra mim – essa não! A 17!”, “Aperta esse
parafuso aqui pra mim enquanto seguro a peça pelo outro lado”.
Assim éramos estimulados a aprender. E cada peça apertada não
vinha sem uma explicação da sua função, ou de como se aperta, ou de porque se
aperta. Mais genial ainda era quando o conserto não dava certo e ele encontrava
uma alternativa, sempre dizendo “se não dá de um jeito, dá de outro, é só ter
paciência”. E do jeito dele sempre dava certo, ainda que virasse gambiarra.
Assim foi com a mecânica, assim foi com a bola, assim foi com
a pesca. Quem acordava às quatro da manhã para tirar isca com ele era eu, meu
irmão não era muito chegado nisso. Ríamos e conversávamos no costão, sempre
antes do sol nascer, melhor hora para pegar marimbau com caniço telescópico, e
claro, enchíamos o balaio de peixes, pra desespero de pescador velho de costão
que diz que se levar mulher para a pescaria, o peixe some.
A cada linha jogada errada, peixe na cara, peixe perdido, a
bronca comia. Nessas horas também não tinha distinção. Criação igual, mijada
igual.
Meu pai não teve “meu gurizão e minha princesinha”. Educou
duas almas com o mesmo amor e respeito, estimulando a curiosidade e os
interesses conforme iam se manifestando, sem podar.
Houve também de minha parte um interesse por essas coisas.
Nunca gostei muito do mundinho das panelinhas, vassourinhas e bonequinhas. Me
entediava. Sempre achei o mundo dos meninos o melhor, sem querer ser um, apenas
queria fazer as mesmas coisas. Isso às vezes tirava o sono, principalmente da
minha mãe que tentava a toda força me convencer a querer ganhar bonecas, mas
sempre rolava uma bola de vôlei, um skate, até autorama eu tive.
Tenho outra irmã, mas ela já veio em um momento diferente e
circunstância diferente, e com gostos diferentes. Eu cresci com meu irmão, ela
veio um pouco mais tarde. Bem mais tarde
e esses hobbies já não eram tão frequentes na rotina de meu pai. Nem o interesse dela tão grande por essas
coisas. E isso também foi respeitado.
Quando precisei adquirir um meio de transporte, cogitei a
moto unicamente por uma questão econômica. Era o que eu podia pagar e ter, e
para piorar eu tinha medo de ter uma, mas era escolher, moto ou ônibus.
Minha primeira moto era ótima, mas muito mal servida em
termos de serviços oferecidos na concessionária. Comecei a ter as primeiras
grandes incomodações quando, por conta de problemas mecânicos por serviços mal
feitos na própria oficina comecei a ouvir coisas do tipo “a senhora não sabe
acelerar” (a moto morria por carburação suja e com peças deterioradas,
posteriormente comprovada) e “a senhora não sabe pisar no freio” (quando o
sistema de freio traseiro travou).
Apesar de participar daquela rotina do meu pai, eu não era
aficcionada nem por carros nem por motos, nem motores, nem potências, isso
pouco me importava, na verdade para ele também. Eu só curtia apertar e frouxar
parafusos e ver como as coisas funcionavam. Quando comecei a me incomodar com
mecânicos e oficinas, aquele tempo me voltou à cabeça, pensei que poderia ir um
pouco adiante e talvez, mexer na minha moto. Se fuço no micro-ondas ou na
máquina de lavar, por que não na moto?
Me inscrevi no curso de Mecânica de Motocicletas do SENAI e
por três meses fiz uma verdadeira terapia.
Descobri que abrindo motores, limpando carburadores, colocando
parafusinhos no lugar, organizando ao desmontar e achando o lugar de cada um na
hora de montar, conseguia abstrair um monte de incomodações do dia.
No primeiro dia rolou aquela historinha de “oh, temos uma
mulher na classe, em geral elas são feras, esforçadas, se destacam mais que os
homens...” (zzzzzzzz tédio...). Não fui parar lá para provar nada, só queria
aprender a mexer em motos.
Decepcionei o professor ao terminar o curso com nota mediana,
afinal como todo mundo eu também matei aulas para beber cerveja no posto de
gasolina, o que era proibido, ainda mais num prédio inteiro que tinha só duas
mulheres (a outra fazia automobilística), logo eu que tinha que ser mau
exemplo. Outra bobagem que não me faz a
cabeça: “se fizer coisa de homem, tem que ser melhor que ele, para se
auto-afirmar”... ah, vá!
Saí de lá sabendo o suficiente para bater boca com mecânicos
nas oficinas, como funciona um motor a explosão, sem nunca entender essa
bruxaria que é o funcionamento da embreagem e praticamente incapaz de consertar
minha própria moto a menos que seja algo realmente muito, muito bobo ou
pequenas manutenções.
O fato é que hoje sei o que meu pai sentia simplesmente
desmontando seu carro ou moto, mesmo sem ter defeitos a consertar, para
conhecê-los. Conhecer seu comportamento, distinguir o que é barulho característico e o que não é, saber que
aquela peça não está no seu estado normal e simplesmente não ter a menor ideia
de para que servem algumas outras.
Hoje me sinto feliz e realizada pelos momentos incríveis que
a motocicleta me proporciona, seja ganhando o mundo por causa do exemplo do
espírito inquieto, livre e aventureiro da minha tia, seja exercitando o
conhecimento, a paciência, a reflexão para a resolução de problemas, proporcionados pela educação igualitária que
meu pai me deu, por esse tesouro que ele passou às minhas mãos. Isso educa para
a vida, isso forja caráter e nos torna mais seguros e confiantes.
Eu não tenho palavras para agradecer ao Seu Raul, que ainda
de vez em quando apesar das dificuldades vai lá fuçar na sua Santana Quantum,
reclamando da vista ruim, da mão que treme, por ele nunca ter feito de mim a
“princesinha” dele.