Como já relatei, meu tempo de afastamento foi muito bem preenchido, tão bem preenchido que em nenhum momento me bateu aquele banzo, aquela sensação de estar sem nada para fazer. E olhe que segui praticamente à risca as restrições médicas de não poder fazer grandes esforços.
Num dia ia visitar alguém, em outro assistia a um filme, lia um livro, pegava a máquina fotográfica e ia para a beira mar tirar foto de biguás e gaivotas, ou ficava dentro de casa mesmo fotografando meus bichos e até as pipocas da bacia.
Houve dias em que me permiti ficar jogada no sofá assistindo “O Clone” novamente, ou quando abria um sol bem lindo, pegava a moto e ia dar uma volta, apesar de eu e o sol termos um acordo de não utilizarmos o mesmo espaço ao mesmo tempo. Incrivelmente, onde chego, ele vai embora!
A tal viagem que tinha sido programada para o ano passado teria que sair nesse período, ou “nunca mais seria realizada”.
Em novembro não pude me afastar porque tinha compromissos com o pré-vestibular comunitário. Em dezembro, além das correrias de fim de ano, recebi visitas em casa e apareceram umas questões pessoais para resolver, das quais não poderia me afastar. Seria então em janeiro, não fosse a quantidade absurda de chuvas que assolaram o Estado e que fizeram com que a defesa civil não parasse de repetir nos noticiários: “quem não tiver absoluta necessidade de viajar, não pegue a estrada, pode haver pontos de alagamento e quedas de barreira”. E o pior trecho é o do Morro dos Cavalos, pelo qual eu teria que passar.
Mais um mês dando voltas curtas, fotografando pipocas e já convencida de que não iria mais viajar, pois no começo de fevereiro teria nova bateria de consultas e exames, mas isso no comecinho do mês, sendo que entrou o segundo mês do ano e as chuvas não paravam.
Na noite de 16 de fevereiro, meu marido me cobrou da viagem: quando você vai pegar a estrada? Não vai visitar sua família? Me deu o estalo e respondi: talvez amanhã!
E assim foi, deixei os alforjes arrumados naquela noite, deixei meu marido no trabalho no outro dia de manhã e liguei para minha tia em Capivari de Baixo dizendo: tia, eu vou até o posto de gasolina abastecer e calibrar os pneus, se eu não ligar de novo, me espere para o almoço, se eu desistir ligo novamente avisando para não preocupar vocês.
Saí do posto rumo à estrada. Quando coloquei a moto na BR 101 pensei, desta vez não é para andar até ali, vou passar pelo menos duas horas pilotando.
Saí numa quinta-feira, por volta das dez da manhã, dia e horário de pouco movimento. Apesar de ter feito tudo de última hora, estava nos meus planos originais escolher um dia assim, não queria pegar movimento pesado ainda mais que o trecho sul está com obras em alguns pontos.
A sensação não dá para explicar. Ainda hoje quando penso na aventura, parece que foi outra pessoa que foi no meu lugar e eu estou contando a história dela. Liberdade, autonomia, independência... passear de moto com os amigos é bom, mas pegar a estrada sozinha não tem adjetivo que descreva!
Peguei um engarrafamento monstro no morro dos cavalos, e como não sou adepta do jeitinho, não quis cortar a fila pelo acostamento. Quase cozinhei de calça jeans, tênis e jaqueta zebra naquele sol de fevereiro. Passado o dito morro, só alegria.
Alguns trechos exigiam mais atenção como na altura de Paulo Lopes, onde tinha umas bolotas de asfalto no meio da pista que eram do tamanho de um capacete, fins de pista dupla, inícios de pista dupla, depois na altura de Imbituba, retas lisinhas, paisagens maravilhosas e eu fazendo parte de tudo aquilo, sem vidro, sem capota que se interpusesse, atrapalhando essa comunhão.
Passei três dias na casa dos meus tios em Capivari de Baixo, com direito a roda de violão, cerveja, visitas a parentes não vistos há anos, visitas de parentes que não me conheciam, ida a lugares legais da infância e até “muita adrenalina”.
Um desses locais era a Gruta de Capivari, onde a gente ia em bando de bicicleta quando era criança. Chegando lá de mirage e com a minha tia na garupa, eis que cola atrás da gente uma viatura da PM, com os guardas olhando de cara feia, especulando o que fazíamos por lá, e seguindo a viatura, duas tias de biz para saber o que a polícia iria fazer com a gente.
Quando tiramos os capacetes e a máquina fotográfica e nos dirigimos à gruta, a viatura deu meia volta e nos deixou em paz, e as tias se foram também (decepcionadas, decerto).
Depois fiquei sabendo que andava pela área um traficante que tinha um “motão igual ao meu”. Será que ele tinha um grande porte igual ao meu também? Hehehe
No domingo de manhã toquei para Laguna. Minha idéia original do ano passado era ir a Capivari e na volta vir pingando nas praias do litoral sul, passar por Laguna estava no roteiro original, mas depois disso eu planejava voltar para casa na segunda feira, direto.
Fiquei na casa de outra tia, da qual eu também sentia muitas saudades e já estava há algum tempo sem ver, ou quando via, não tinha tempo de conversar. Quando cheguei lá no domingo de manhã, comecei a passar mal e a ter crises de ansiedade. Aí o bicho pegou!
De Capivari a Laguna eu estava me sentindo ligeiramente tonta, mas devido à pressão baixa mesmo, estava abafado demais e para ajudar, peguei ventos na “ponte” da Cabeçuda que me fizeram rir das vezes que senti medo de passar as pontes daqui de Floripa. Pista dupla, ventando de um lado e o “bafo” das carretas do outro, foi meio assustador.
Acho que quando cheguei lá, entrei na neura de “amanhã viajo”, “amanhã tem que pegar a estrada”, “amanhã tenho que ir embora”... Depois do almoço deitei para ver se conseguia controlar isso e levantei mais ou menos na mesma, resolvi espairecer descendo para a praia.
Lóoooooogico que quando resolvi descer, o sol se escondeu, ficou frio e começou a garoar, mas fiquei por lá vendo o povo jogar bola e cuidando das cadeiras enquanto minha tia dava uma caminhada, e jogando aquele jogo de cobrinha no meu celular (ou no que ainda resta dele). Voltei para casa bem melhor.
De noite ficamos sozinhas eu e minha tia e contei dessas dificuldades e também do fato de eu ter passado mal de manhã, coisa que ela disse não ter percebido. Acho que por isso também muita gente se surpreende quando falo do problema, para eu deixar transparecer, a coisa tem que estar muito fora de controle mesmo.
Amanheci legal na segunda feira, me despedi da minha tia e peguei a estrada novamente. Ainda tinha tempo para ficar e curtir mais um pouco, mas a saudade de casa também já estava apertando, do meu marido, dos meus bichos, da minha cama (e pensando na bagunça que estaria me esperando, heheh).
Um pouco antes da entrada de Itapirubá, deu na doida de ir para lá procurar a casa de um tio que também não via há muito tempo, cuja única referência que eu tinha é: ele mora no morro que divide as duas praias.
Era cedo, peguei a entrada e comecei minha investigação. Depois de algum tempo, achei o tal do morro. No morro ninguém conhecia o cara (e tinham me dito, ah é só chegar lá que todo mundo conhece).
Descobri depois que tinham três pessoas com o mesmo nome, todas morando próximas, com uma referência, comecei a subir o tal do morro. Tive que deixar a moto em baixo, pois era uma trilha, a qual subi debaixo de sol escaldante, de calça jeans, tênis e jaqueta zebra.
Pergunta aqui, pergunta ali, meu capacete rolou morro abaixo, peguei uma referência e disse, ah é a última, se não achar vou embora, estava suando e sedenta feito um camelo. Parei para perguntar para um senhor que estava abaixado mexendo num arpão sobre o dito meu tio e pensei, se esse cara não souber, ninguém mais vai saber, meu tio também pesca de arpão. Quando ele levantou a cabeça para responder – era ele!
Foi muito legal e divertido, fui super bem recebida e ele me mostrou o visual “estragado” da casa dele. Qualquer janela que se abra tem vista para a praia de Itapirubá, se subir “na laje”, tem vista para o outro lado do costão. Quem disse que eu estava com vontade de ir embora???
Depois daquela despedida de mais de meia hora e de promessas de sim, volto qualquer dia (e vou voltar mesmo!), toquei mais um trecho até a praia da Pinheira, onde visitaria outro tio, mas ao chegar lá ele não estava. Pensei, almoço por aqui, faço o que agora? (oh, doce dilema) Lembrei de um velho amigo que morava na praia de fora. Mais um tantinho de estrada e estava na casa dele. Está aposentado e vivendo com a esposa à beira mar, coisa que ainda farei um dia também (mas sem esposa, com esposo de preferência).
Depois do almoço quando a conversa estava ficando boa, só ouvi aquele estouro de trovoada, olhei para fora e nunca vi um céu tão preto e carregado. Vinha uma tempestade, tive que dar uma de cachorro magro, agradecer o almoço e sair correndo. Já estava bem perto de casa, mas além de não gostar de pilotar na chuva tinham as coisas que eu não queria molhar, entre elas minha máquina fotográfica novinha que ganhei de natal.
Era muito louco, olhar para frente e ver o dia mais lindo do mundo e no retrovisor ver aquela tempestade se anunciando, dava a impressão de estar transitando entre dois mundos diferentes (que viagem, eu sei, mas é assim mesmo).
Naquela tarde não chegou a chover em São José mas certamente deve ter caído o mundo na Praia de Fora porque o negócio estava feio mesmo. No dia seguinte começou a chover aqui e não parou mais, o que me deu a impressão de que o tempo deu uma trégua para que eu pudesse realizar meu grande sonho.
Esqueci de mencionar que fiz muitas paradas pelo caminho para tirar fotos. Mais uma vez a maravilhosa sensação de ser dona do próprio tempo e destino, parar onde se quer, fazer o que se quer na hora e lugar que dá vontade.
Não sei se é melhor voltar para casa com a sensação de ter superado um grande desafio e ter realizado uma aventura, para muitos motociclistas insignificante, talvez alguns andem por dia a quantidade de quilômetros que levei anos me ensaiando para percorrer, mas que para mim foi indescritivelmente emocionante, ou voltar com tanta felicidade por tantos amigos que encontrei felizes e vivendo sua vida da melhor forma possível.
A felicidade daquele amigo ou parente que é lembrado por nos ver depois de tanto tempo também é algo contagiante, pois nos tempos atuais visita é quase sinônimo de estorvo, ou a correria nos cansa e impede de ver um amigo, ou quando vencemos essa barreira do cansaço, podemos estar atrapalhando o sossego alheio.
Apesar disso é bom ter um tempo na vida para poder sentir saudades, e perceber que temos pessoas queridas que sempre tem os braços abertos para nos receber quando achamos que nesse mundo ninguém mais se importa com ninguém.
Amanhã volto a trabalhar, seja o que Deus quiser.
P.S.: Esqueci de comentar - Sentiu vontade de fazer algo semelhante? Faça como eu fiz, mas seja mais esperto - use equipamento de segurança, calça, jaqueta, tênis. Mas use um bom par de luvas ou passe protetor solar nas mãos, porque cheguei com as duas torradas em casa...